Refluxo Mental: fidelidade ao punk rock em “Socialização das Perdas”, seu primeiro álbum

 O punk rock começou suas batalhas no Brasil no final dos anos 1970, começo dos 1980. Aqueles primeiros grupos, munidos de sofríveis instrumentos e equipamentos musicais, viam no Brasil daquela época, ainda sob a atmosfera da ditadura militar, um vasto e fértil universo político-social para concepção de suas músicas. Ao longo dos anos, alguns outros estilos tiveram a raízes do punk como característica, como o hardcore, pós-punk, pop punk, e algumas misturas pop que vieram a acontecer. Mas aquela sonoridade visceral e direta de décadas atrás ainda é objeto de carreira de muitas bandas no país. Uma delas é o Refluxo Mental, de São José do Rio Preto/SP.

A trajetória da banda é recente, começando em março de 2019. Desde o princípio o time tinha a intenção de investir em material autoral, e como diz as palavras da própria banda, “criar um punk rock vinculado ao pensamento crítico, como alternativa às amarras da desrazão, da barbárie e do reacionarismo”.

A formação atual do grupo se fixou com Ariel Joio (bateria), Matheus (guitarra /voz), Maurício (baixo) e Everton Facada (guitarra). Após mais de um ano aprimorando suas composições, a banda soltou, em outubro de 2020, seu primeiro disco, intitulado “Socialização das Perdas”. No mesmo dia de lançamento do álbum (dia 10) ia ao ar, em seu canal do youtube, o clipe da faixa “Balbúrdia”.

O Ready conversou com membros da banda, que além de contar sobre sua curta carreira até então, revela várias explanações (bem maduras por sinal) sobre as influências políticas e históricas, que serviram como fonte de construção de seus temas. Além das causas filantrópicas em que a banda se envolveu nos últimos meses.

 

ReadytoRock - A banda está lançando o disco “Socialização das Perdas”. Me fale do disco. Quanto tempo levou as composições e produção?

Matheus: O nome do disco veio de um conceito do economista brasileiro Celso Furtado. O termo foi cunhado para apresentar a ideia de que quando os mais ricos precisam “ajustar” a economia, recorrem ao Estado, que atua de forma a fazer o prejuízo ser dividido por toda a população. O conceito de Furtado refletia o processo da compra do café pelo Estado (antes, no Governo de Washington Luís, e depois, de maneira ainda mais decisiva, com a queima do café excedente, com Getúlio Vargas, a partir de 1930), como forma de controle da exportação. Quem pagava era o pobre, pois com a desvalorização da moeda, a partir dessa ação, o custo de vida subia. Era uma questão, a princípio, econômica, para Furtado. Não muito diferente do que vivemos ainda hoje. Quisemos, no entanto, trazer o conceito para uma representação social. Vide agora durante a pandemia, enquanto milhões de brasileiros se viram desempregados, os mais ricos se tornaram mais ricos.

As composições vieram de trocas de ideias nos pós-ensaios. Surgia alguma ideia bacana, um de nós chegava em casa, esboçava uma letra (às vezes já com uma melodia) e apresentava no próximo ensaio, onde era melhor trabalhada por todos. Cada música já começava a ser gravada conforme íamos compondo – uma vez que fizemos tudo em home studio. Por isso, antes do lançamento oficial do CD, fomos apresentando versões preliminares das músicas nas redes sociais.

O período de composição/produção perdurou de março de 2019 a outubro de 2020, quando lançamos oficialmente o CD nas versões finais de cada faixa. A fase de composição foi dividida de acordo com a transição de integrantes na banda. A primeira fase (comigo, com Ariel e Maurício) trabalhou as músicas “Papo de Pombo”, “Apagão”, “Oitenta”, “Rio Preto” e “Balbúrdia”. Num segundo momento, com a participação do Lucas como guitarrista, trabalhamos as músicas restantes, com alguma releitura também nas músicas já finalizadas da primeira fase. A última música (“Silêncio dos Bons”) teve os arranjos de guitarra mais trabalhados do Everton, que chegou depois para somar na família, após a saída do Lucas.

 

RR - A qualidade de produção do disco é muito boa. Onde vocês gravaram e pós produziram (mixagem/masterização)?

Matheus: Como mencionei antes, fizemos tudo de casa, no melhor do “faça você mesmo”: cada integrante ia gravando seu instrumento e nosso amigo Lucas (ex-guitarrista da banda) ia mixando e masterizando, até gostarmos do resultado final. Mesmo tendo deixado a banda no meio do processo, ao voltar a sua terra natal (Lençóis Paulista/SP), onde abriu um estúdio (o Jardim Elétrico), ele continuou ajudando a gente a terminar a produção.

 

RR - Alguns temas como "Andar de Baixo" e "Papo de Pombo” se baseiam num punk clássico. Já outras como "Para Governar" e "Oitenta" tem uma levada mais hardcore. Como a banda lida com o elemento variação e quais suas influências?

Matheus: Antes de mais nada, a gente se considera uma banda de punk rock. Mas temos influências diversas entre os integrantes. O baterista, Joio, curte um rock'n'roll mais clássico. Enquanto isso, o baixista, Maurício, curte um punk/hardcore mais melódico como o do Rise Against e das bandas californianas (mas não dispensa um ska-punk). Eu também numa pegada mais melódica gosto de bandas como Anti-flag e Bad Religion. O novo guitarrista, Everton (Facada), já tem uma pegada do Heavy Metal e do Grunge, de trabalhar mais a parte instrumental. Cada um trouxe um pouco de si para a banda, então cada música saiu em uma sonoridade única. Gostamos dessa hibridização no nosso som.

 

RR - A temática lírica das músicas parecer seguir uma linha social/comportamental. Este é um padrão que a banda tem como prática?

Matheus: O intuito original de formação da banda foi desde o começo fazer críticas frente ao governo Bolsonaro, e a extrema direita que vem crescendo no Brasil. Mas não gostamos muito da ideia tradicional do punk de só falar mal do Estado. A questão é mais complexa; o buraco é mais embaixo. Um governo ruim não surge sozinho num sistema democrático. Há pessoas que compactuam com ele e o elegem. No final das contas, a política é um jogo de espelho. Os políticos só podem ser em maioria corruptos (como é fácil dizer), porque a própria população também é. Então, em nossas letras, procuramos apresentar sempre um “ar” de crítica individual, comportamental. Se não mudarmos a nós mesmos, não conseguiremos mudar os governos. Reclamar é muito fácil.

Na prática, enquanto uma banda independente de punk do interior paulista, é mais difícil trazer alguma ação direta que possa impactar diretamente nas questões que tratamos, da maneira como gostaríamos. Nossa música não chega a todos. O que conseguimos fazer, para além do alcance de nossas letras, é fazer shows beneficentes, arrecadando, por exemplo, o dinheiro da bilheteria dos shows, para doar a instituições de caridade, como fizemos no último 8 de março, com outras bandas – toda a bilheteria foi para o asilo “Lar Esperança”, de Rio Preto.

 

 

RR - O que representa a concepção visual da capa?

Matheus: A capa procurou refletir o nome do álbum (“Socialização das Perdas”): um pobre, na maioria das vezes, um pobre negro, em desespero, soltando seu grito de protesto e lamento no centro de uma grande cidade, cercado por arranha-céus. É a imagem da selva de pedra. Começa a ser a imagem de Rio Preto. A personagem da capa foi feita de uma bricolagem de vários pedaços de corpos de pessoas aleatórias encontradas em bancos de imagens na internet.

 

RR - O disco saiu em mídia física ou apenas nas plataformas digitais? Vi que as músicas estão no canal do youtube da banda.

Matheus: A princípio soltamos no Youtube e Bandcamp as primeiras versões de cada música, conforme íamos produzindo uma a uma. Ao final, disponibilizamos todas nas principais plataformas de streaming. Gostaríamos de lançar o disco físico também. Uma galera cobrou a gente disso. Tem gente da antiga que ainda gosta de ter o lance em mãos. Coisa de colecionador. A gente acha legal também. Estamos trabalhando na ideia, e juntando um investimento para trazer nesse formato também.

Everton: O tempo mudou muito e as pessoas hoje tem fácil acesso só com um simples toque no celular, tablet e o próprio computador. Creio que essa foi a fôrma mais fácil de alcançar as pessoas.

 


 

RR - Como está a divulgação e aceitação do disco Brasil afora?

Matheus: Por ser uma banda do interior, a aceitação inicial do disco está sendo bem bacana. Já fomos convidados para compor duas coletâneas, e essa já é nossa terceira entrevista sobre o lançamento. Ainda assim, é difícil, enquanto banda nova, alcançar um público maior sem um produtor. De modo geral, a galera gosta do clássico. De mais do mesmo. De pubs que tocam cover do que já está consolidado. Tem pouco espaço (de ouvintes) para o novo. Por fim, a pandemia também atrapalhou bastante nessa questão. A gente teve que desmarcar vários shows, e ficamos impedidos de pegar outros para divulgar nosso som por aí.

Maurício: A cara, a gente ainda não impulsionou, mas está tendo uma boa aceitação no underground no boca a boca mesmo. No Spotify e Deezer tá sendo bem ouvido e o clipe no YouTube também tá legal... Sabe que até em Moçambique a gente tem uma galera que curte a banda e ouve as músicas, então isso é bem gratificante. Mas, como o Matheus falou, a falta dos shows por causa da pandemia deu uma freada no ímpeto e isso é meio “bad”, mas a gente busca contornar isso aí! Agora em dezembro vai rolar muita coisa bacana em matéria de divulgação.

 

RR - Como você vê o cenário punk no Brasil hoje em dia e em Rio Preto?

Matheus: O punk não é a sonoridade musical do momento, mesmo dentro do rock – que também é fraco no Brasil. No underground, a gente anda na fase do grindcore. Mesmo as bandas punks nacionais mais consagradas nesse meio, não tem mais tanto espaço quanto na década de 1980 e 1990. No interior isso é ainda mais difícil. O nosso maior show até agora foi tocar para 60 pessoas. E muitas nem estavam lá para ver a gente.

Everton: Creio que o punk nunca morreu, só que vivemos em dias onde as pessoas querem pensar menos. Por exemplo, existem músicas onde não falam nada de produtivo, mas acaba ficando na cabeça de quem as escutam. Agora uma música que fala sobre melhorias, ou até mesmo mostram a realidade do Brasil, ninguém dá muito valor.

 

RR - Antes da pandemia, como era a rotina de shows da banda?

Matheus: Estávamos fazendo, em média, uns dois shows por mês – sobretudo aqui na região de Rio Preto. Como todos trabalhamos na cidade (menos eu que já estava no “isolamento” de escrita da dissertação de mestrado), fica difícil pegar shows muito longe. Estávamos cogitando pegar umas “férias coletivas”, para fazer uma turnê pelo Brasil, mas a pandemia atrapalhou as coisas um bocado.


 

RR - Quais os planos para 2021?

Matheus: Nosso desejo atual era voltar aos palcos. Mas não pretendemos fazer isso sem uma vacina eficaz disponível. Talvez comecemos a trabalhar em novas composições (temos uns rascunhos já). Estamos sem ensaiar desde que a pandemia começou. Mas temos nos falado constantemente, organizando algumas coisas, pensando o que podemos fazer enquanto isso. Nada de concreto por enquanto.

RR - Fique à vontade, para quaisquer outras informações da banda.

Maurício: Com a licença poética de adaptar Fernando Pessoa: "Não somos nada, nunca seremos nada, não podemos querer ser nada. À parte isso, temos em nós todos os sonhos do mundo!" Quem quiser conhecer nosso trabalho dá uma conferida nas nossas redes sociais!

*Respondido por Matheus (guitarra/vocal), Maurício (baixo) e Everton (guitarra).

 

Contatos:

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